Quando eu era pequena havia um mistério chamado Infância. Nunca tínhamos
ouvido falar de coisas aberrantes como educação sexual, política e
pedofilia. Vivíamos num mundo mágico de princesas imaginárias, príncipes
encantados e animais que falavam. A pior pessoa que conhecíamos era a Bruxa
da Branca de Neve. Fazíamos hospitais para as formigas onde as camas eram
folhinhas de oliveira e não comíamos à mesa com os adultos. Isto poupava-nos
a conversas enfadonhas e incompreensíveis, a milhas do nosso mundo tão
outro, e deixava-nos livres para projectos essenciais, como ir ver oscilar
os agriões nos regatos e fazer colares e brincos de cerejas. Baptizávamos as
árvores, passeávamos de burro, fabricávamos grinaldas de flores do campo.
Fazíamos quadras ao desafio, inventávamos palavras e entoávamos melodias
nunca aprendidas.
Na Infância as escolas ainda não tinham fechado. Ensinavam-nos coisas
inúteis como as regras da sintaxe e da ortografia, coisas traumáticas como
sujeitos, predicados e complementos directos, coisas imbecis como verbos e
tabuadas. Tinham a infeliz ideia de nos ensinar a pensar e a surpreendente
mania de acreditar que isso era bom.
Não batíamos na professora, levávamos-lhe flores.
E depois ainda havia infância para perceber o aroma do suco das maçãs
trincadas com dentes novos, um rasto de hortelã nos aventais, a angustia de
esperar o nascer do sol sem ter a certeza de que viria (não fosse a ousadia
dos pássaros só visíveis na luz indecisa da
aurora), a beleza das cantigas límpidas das camponesas, o fulgor das
papoilas. E havia a praia, o mar, as bolas de Berlim. (As bolas de Berlim
são uma espécie de ex-libris da Infância e nunca mais na vida houve fosse o
que fosse que nos soubesse tão bem).
Aos quatro anos aprendi a ler; aos seis fazia versos, aos nove ensinaram-me
inglês e pude alargar o âmbito das minhas leituras infantis. Aos treze fui,
interna, para o Colégio. Ali havia muitas raparigas que cheiravam a pão,
escreviam cartas às escondidas, e sonhavam com os filmes que viam nas
férias. Tínhamos a certeza de que o Tyrone Power havia de vir buscar-nos,
com os seus olhos morenos, depois de nos ter visto fazer uma entrada
espampanante no salão de baile onde o Fred Astaire já nos teria escolhido
para seu par ideal.
Chamava-se a isto Adolescência, as formas cresciam-nos como as necessidades
do espírito, música, leitura, poesia, para mim sobretudo literatura,
história universal, história de arte, descobrimentos e o Camões a contar
aquilo tudo, e as professoras a dizerem, aplica-te,
menina, que vais ser escritora.
Eram aulas gloriosas, em que a espuma do mar entrava pela janela, a música
da poesia medieval ressoava nas paredes cheias de sol, ay eu coitada, como
vivo em gran cuidado, e ay flores, se sabedes novas, vai-las lavar alva, e o
rio corria entre as carteiras e nele
molhávamos os pés e as almas.
Além de tudo isto, que sorte, ainda havia tremas e acentos graves.
Mas também tínhamos a célebre aula de Economia Doméstica de onde saíamos com
a sensação de que a mulher era uma merdinha frágil, sem vontade própria,
sempre a obedecer ao marido, fraca de espírito que não de corpo, pois, tendo
passado o dia inteiro a esfregar o chão com palha de aço, a espalhar cera, a
puxar-lhe o lustro, mal ouvia a chave na porta havia de apresentar-se ao
macho milagrosamente fresca, vestida de Doris Day, a mesa posta, o
jantarinho rescendente, e nem uma unha partida, nem um cabelo desalinhado,
lá-lá-lá, chegaste, meu amor, que felicidade! (A professora era uma
solteirona, mais sonhadora do que nós, que sabia todas as receitas do mundo
para tirar todas as nódoas do mundo e os melhores truques para arear os
tachos de cobre que ninguém tinha na vida real).
Mas o que sabíamos nós da vida real? Aos 17 anos entrei para a Faculdade sem
fazer a mínima ideia do que isso fosse. Aos 19 casei-me, ainda completamente
em branco (e não me refiro só à cor do vestido).
Só seis anos, três filhos e centenas de livros mais tarde é que resolvi
arrumar os meus valores como quem arruma um guarda-vestidos.
Isto não, isto não se usa, isto não gosto, isto sim, isto seguramente, isto
talvez. Os preconceitos foram os primeiros a desandar, assim como todos os
itens que à pergunta porquê só me tinham respondido porque sim, ou, pior,
porque sempre foi assim. E eu, tumba, lixo, se sempre foi assim é altura de
deixar de ser e começar a abrir caminho às gerações futuras (ainda não sabia
que entre os meus 12 netos se contariam nove mulheres). Ouvi ontem uma jovem
a dizer, a revolução que nós fizemos nos últimos anos. Não meu amor: a
revolução que NÓS fizemos nos últimos 50 anos. Mas não interessa quem fez o
quê. É preciso é que tenha sido feito. E que seja feito. E eu fiz tudo,
quando ainda não era suposto. Quando descobri que ser livre era acreditar em
mim própria, nos meus poucos, mas bons, valores pessoais.
Depois foram as circunstâncias da vida. A alegria de mais um filho, erros,
acertos, disparates, generosidades, ingenuidades, tudo muito bom para
aprender alguma coisa. Tudo muito bom. Aprender é a palavra chave e dou por
mal empregue o dia em que não aprendo nada. Ainda espero ter tempo de
aprender muita coisa, agora que decidi que a Bíblia é uma metáfora da vida
humana e posso glosar essa descoberta até, praticamente, ao infinito.
Pois é. Eu achava, pobre de mim, que era poetisa. Ainda não sabia que estava
só a tirar apontamentos para o que havia de fazer mais tarde. A ganhar
intimidade, cumplicidade com as palavras. Também escrevia crónicas e contos
e recados à mulher-a-dias. E de repente, aos 63 anos, renasci. Cresceu-me
uma alma de romancista e vá de escrever dez romances em 12 anos, mais um
livro de contos (Os Linhos da Avó) e sete ou oito livros infantis. (Esta não
é a minha área, mas não sei porquê, pedem-me livros infantis. Ainda não
escrevi nenhum que me procurasse como acontece com os romances para adultos,
que vêm de noite ou quando vou no comboio e se me insinuam nos interstícios
do cérebro, e me atiram para outra dimensão e me fazem sorrir por dentro o
tempo todo e me tornam mais disponível, mais alegre, mais nova).
Isto da idade também tem a sua graça. Por fora, realmente, nota-se muito.
Mas eu pouco olho para o espelho e esqueço-me dessa história da imagem.
Quando estou em processo criativo sinto-me bonita. É como se tivesse
luzinhas na cabeça. Há 45 anos, com aquela soberba muito feminina, costumava
dizer que o meu espelho eram os olhos dos homens.
Agora são os olhos dos meus leitores, sem distinção de sexo, raça, idade ou
religião. É um progresso enorme.
Se isto fosse uma autobiografia teria que dizer que, perto dos 30, comecei a
dizer poesia na televisão e pelos 40 e tais pus-me a fazer umas maluqueiras
em novelas, séries, etc. Também escrevi algumas destas coisas e daqui
senti-me tentada a escrever para o palco, que é uma das coisas mais
consoladoras que existem (outra pessoa diria gratificantes, mas eu, não sei
porquê, embirro com essa palavra). Não há nada mais bonito do que ver as
nossas palavras ganharem vida, e sangue, e alma, pela voz e pelo corpo e
pela inteligência dos actores. Adoro actores. Mas não me atrevo a fazer
teatro porque não aprendi.
Que mais? Ah, as cantigas. Já escrevi mais de mil e 500 e é uma das coisas
mais divertidas que me aconteceu. Ouvir a música e perceber o que é que lá
vem escrito, porque a melodia, como o vento, tem uma alma e é preciso
descobrir o que ela esconde. Depois é uma lotaria. Ou me cantam
maravilhosamente bem ou tristemente mal. Mas há que arriscar e, no fundo, é
só uma cantiga. Irrelevante.
Se isto fosse uma autobiografia teria muitas outras coisas para contar. Mas
não conto. Primeiro, porque não quero. Segundo, porque só me dão este espaço
que, para 75 anos de vida, convenhamos, não é excessivo.
Encontramo-nos no meu próximo romance.
ouvido falar de coisas aberrantes como educação sexual, política e
pedofilia. Vivíamos num mundo mágico de princesas imaginárias, príncipes
encantados e animais que falavam. A pior pessoa que conhecíamos era a Bruxa
da Branca de Neve. Fazíamos hospitais para as formigas onde as camas eram
folhinhas de oliveira e não comíamos à mesa com os adultos. Isto poupava-nos
a conversas enfadonhas e incompreensíveis, a milhas do nosso mundo tão
outro, e deixava-nos livres para projectos essenciais, como ir ver oscilar
os agriões nos regatos e fazer colares e brincos de cerejas. Baptizávamos as
árvores, passeávamos de burro, fabricávamos grinaldas de flores do campo.
Fazíamos quadras ao desafio, inventávamos palavras e entoávamos melodias
nunca aprendidas.
Na Infância as escolas ainda não tinham fechado. Ensinavam-nos coisas
inúteis como as regras da sintaxe e da ortografia, coisas traumáticas como
sujeitos, predicados e complementos directos, coisas imbecis como verbos e
tabuadas. Tinham a infeliz ideia de nos ensinar a pensar e a surpreendente
mania de acreditar que isso era bom.
Não batíamos na professora, levávamos-lhe flores.
E depois ainda havia infância para perceber o aroma do suco das maçãs
trincadas com dentes novos, um rasto de hortelã nos aventais, a angustia de
esperar o nascer do sol sem ter a certeza de que viria (não fosse a ousadia
dos pássaros só visíveis na luz indecisa da
aurora), a beleza das cantigas límpidas das camponesas, o fulgor das
papoilas. E havia a praia, o mar, as bolas de Berlim. (As bolas de Berlim
são uma espécie de ex-libris da Infância e nunca mais na vida houve fosse o
que fosse que nos soubesse tão bem).
Aos quatro anos aprendi a ler; aos seis fazia versos, aos nove ensinaram-me
inglês e pude alargar o âmbito das minhas leituras infantis. Aos treze fui,
interna, para o Colégio. Ali havia muitas raparigas que cheiravam a pão,
escreviam cartas às escondidas, e sonhavam com os filmes que viam nas
férias. Tínhamos a certeza de que o Tyrone Power havia de vir buscar-nos,
com os seus olhos morenos, depois de nos ter visto fazer uma entrada
espampanante no salão de baile onde o Fred Astaire já nos teria escolhido
para seu par ideal.
Chamava-se a isto Adolescência, as formas cresciam-nos como as necessidades
do espírito, música, leitura, poesia, para mim sobretudo literatura,
história universal, história de arte, descobrimentos e o Camões a contar
aquilo tudo, e as professoras a dizerem, aplica-te,
menina, que vais ser escritora.
Eram aulas gloriosas, em que a espuma do mar entrava pela janela, a música
da poesia medieval ressoava nas paredes cheias de sol, ay eu coitada, como
vivo em gran cuidado, e ay flores, se sabedes novas, vai-las lavar alva, e o
rio corria entre as carteiras e nele
molhávamos os pés e as almas.
Além de tudo isto, que sorte, ainda havia tremas e acentos graves.
Mas também tínhamos a célebre aula de Economia Doméstica de onde saíamos com
a sensação de que a mulher era uma merdinha frágil, sem vontade própria,
sempre a obedecer ao marido, fraca de espírito que não de corpo, pois, tendo
passado o dia inteiro a esfregar o chão com palha de aço, a espalhar cera, a
puxar-lhe o lustro, mal ouvia a chave na porta havia de apresentar-se ao
macho milagrosamente fresca, vestida de Doris Day, a mesa posta, o
jantarinho rescendente, e nem uma unha partida, nem um cabelo desalinhado,
lá-lá-lá, chegaste, meu amor, que felicidade! (A professora era uma
solteirona, mais sonhadora do que nós, que sabia todas as receitas do mundo
para tirar todas as nódoas do mundo e os melhores truques para arear os
tachos de cobre que ninguém tinha na vida real).
Mas o que sabíamos nós da vida real? Aos 17 anos entrei para a Faculdade sem
fazer a mínima ideia do que isso fosse. Aos 19 casei-me, ainda completamente
em branco (e não me refiro só à cor do vestido).
Só seis anos, três filhos e centenas de livros mais tarde é que resolvi
arrumar os meus valores como quem arruma um guarda-vestidos.
Isto não, isto não se usa, isto não gosto, isto sim, isto seguramente, isto
talvez. Os preconceitos foram os primeiros a desandar, assim como todos os
itens que à pergunta porquê só me tinham respondido porque sim, ou, pior,
porque sempre foi assim. E eu, tumba, lixo, se sempre foi assim é altura de
deixar de ser e começar a abrir caminho às gerações futuras (ainda não sabia
que entre os meus 12 netos se contariam nove mulheres). Ouvi ontem uma jovem
a dizer, a revolução que nós fizemos nos últimos anos. Não meu amor: a
revolução que NÓS fizemos nos últimos 50 anos. Mas não interessa quem fez o
quê. É preciso é que tenha sido feito. E que seja feito. E eu fiz tudo,
quando ainda não era suposto. Quando descobri que ser livre era acreditar em
mim própria, nos meus poucos, mas bons, valores pessoais.
Depois foram as circunstâncias da vida. A alegria de mais um filho, erros,
acertos, disparates, generosidades, ingenuidades, tudo muito bom para
aprender alguma coisa. Tudo muito bom. Aprender é a palavra chave e dou por
mal empregue o dia em que não aprendo nada. Ainda espero ter tempo de
aprender muita coisa, agora que decidi que a Bíblia é uma metáfora da vida
humana e posso glosar essa descoberta até, praticamente, ao infinito.
Pois é. Eu achava, pobre de mim, que era poetisa. Ainda não sabia que estava
só a tirar apontamentos para o que havia de fazer mais tarde. A ganhar
intimidade, cumplicidade com as palavras. Também escrevia crónicas e contos
e recados à mulher-a-dias. E de repente, aos 63 anos, renasci. Cresceu-me
uma alma de romancista e vá de escrever dez romances em 12 anos, mais um
livro de contos (Os Linhos da Avó) e sete ou oito livros infantis. (Esta não
é a minha área, mas não sei porquê, pedem-me livros infantis. Ainda não
escrevi nenhum que me procurasse como acontece com os romances para adultos,
que vêm de noite ou quando vou no comboio e se me insinuam nos interstícios
do cérebro, e me atiram para outra dimensão e me fazem sorrir por dentro o
tempo todo e me tornam mais disponível, mais alegre, mais nova).
Isto da idade também tem a sua graça. Por fora, realmente, nota-se muito.
Mas eu pouco olho para o espelho e esqueço-me dessa história da imagem.
Quando estou em processo criativo sinto-me bonita. É como se tivesse
luzinhas na cabeça. Há 45 anos, com aquela soberba muito feminina, costumava
dizer que o meu espelho eram os olhos dos homens.
Agora são os olhos dos meus leitores, sem distinção de sexo, raça, idade ou
religião. É um progresso enorme.
Se isto fosse uma autobiografia teria que dizer que, perto dos 30, comecei a
dizer poesia na televisão e pelos 40 e tais pus-me a fazer umas maluqueiras
em novelas, séries, etc. Também escrevi algumas destas coisas e daqui
senti-me tentada a escrever para o palco, que é uma das coisas mais
consoladoras que existem (outra pessoa diria gratificantes, mas eu, não sei
porquê, embirro com essa palavra). Não há nada mais bonito do que ver as
nossas palavras ganharem vida, e sangue, e alma, pela voz e pelo corpo e
pela inteligência dos actores. Adoro actores. Mas não me atrevo a fazer
teatro porque não aprendi.
Que mais? Ah, as cantigas. Já escrevi mais de mil e 500 e é uma das coisas
mais divertidas que me aconteceu. Ouvir a música e perceber o que é que lá
vem escrito, porque a melodia, como o vento, tem uma alma e é preciso
descobrir o que ela esconde. Depois é uma lotaria. Ou me cantam
maravilhosamente bem ou tristemente mal. Mas há que arriscar e, no fundo, é
só uma cantiga. Irrelevante.
Se isto fosse uma autobiografia teria muitas outras coisas para contar. Mas
não conto. Primeiro, porque não quero. Segundo, porque só me dão este espaço
que, para 75 anos de vida, convenhamos, não é excessivo.
Encontramo-nos no meu próximo romance.
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