17/05/2009

A PROPÓSITO DE MIMETISMO...

"Há pouco, visitei uma escola do Porto, onde os alunos foram induzidos a produzir versos miméticos dos que constam do meu poema "O Limpa-Palavras": "A palavra brisa refresca-me, a palavra solidão faz-me companhia", etc. Pois bem, a uma dessas crianças, o Bruno, de seis anos, da Escola de S.Tomé, fugiu-lhe a inspiração para o futebol: "A PALAVRA AZUL FAZ-ME CAMPEÃO". Como disse Benjamim Péret: o homem nasce poeta, as crianças são a prova disso. Ora, acontece que as conversas que mantenho com os meus leitores mais jovens nas escolas passam frequentemente da literatura para o futebol, que sabem ser um tema da minha predilecção (e da deles então...).
(...)

Por que se é do F.C.Porto, do Benfica ou do Sporting? O factor mais poderoso é o da identificação com quem ganha, essa irreprimível afeição pelos vencedores crónicos. Os mais jovens adeptos do F.C.Porto nasceram em Lisboa? E então? Há algum mal em querer pertencer à tribo dos melhores? Pois bem, o Bruno com apenas seis anos já viu o seu clube ganhar uma data de títulos e pôde cantar outra vez na noite de domimgo: "Campeões! Campeões! Nós somos Campeões!" E nós, os mais velhos, que crescemos a ver o clube perder, mas ainda fomos a tempo de viver a era das grandes conquistas, também. A palavra azul fez-nos campeões."

ÁLVARO MAGALHÃES ( Escritor e jornalista)
Excerto do artigo de opinião publicado no JN em 17.05.09


O LIMPA-PALAVRAS

Limpo palavras.
Recolho-as à noite, por todo o lado:
a palavra bosque, a palavra casa, a palavra flor.
Trato delas durante o dia
enquanto sonho acordado.
A palavra solidão faz-me companhia.

Quase todas as palavras
precisam de ser limpas e acariciadas:
a palavra céu, a palavra nuvem, a palavra mar.
Algumas têm mesmo de ser lavadas,
é preciso raspar-lhes a sujidade dos dias
e do mau uso.
Muitas chegam doentes,
outras simplesmente gastas, estafadas,
dobradas pelo peso das coisas
que trazem às costas.

A palavra pedra pesa como uma pedra.
A palavra rosa espalha o perfume no ar.
A palavra árvore tem folhas, ramos altos.
Podes descansar à sombra dela.
A palavra gato espeta as unhas no tapete.
A palavra pássaro abre as asas para voar.
A palavra coração não pára de bater.
Ouve-se a palavra canção.
A palavra vento levanta os papéis no ar e
é preciso fechá-la na arrecadação.

No fim de tudo voltam os olhos para a luz
e vão para longe,
leves palavras voadoras
sem nada que as prenda à terra,
outra vez nascidas pela minha mão:
a palavra estrela, a palavra ilha, a palavra pão.

A palavra obrigado agradece-me.
As outras não.
A palavra adeus despede-se.
As outras já lá vão, belas palavras lisas
e lavadas como seixos do rio:
a palavra ciúme, a palavra raiva, a palavra frio.

Vão à procura de quem as queira dizer,
de mais palavras e de novos sentidos.
Basta estenderes a mão
para apanhares a palavra barco ou a palavra amor.

Limpo palavras.
A palavra búzio, a palavra lua, a palavra palavra.
Recolho-as à noite, trato delas durante o dia.
A palavra fogão cozinha o meu jantar.
A palavra brisa refresca-me.
A palavra solidão faz-me companhia.


Álvaro Magalhães


Nota do Administrador do Brisadareosa: Em nome da pluralidade clubística e com o intuito de não ferir susceptibilidades, asseguramos que será dado o mesmo tratamento "bloguístico" a qualquer uma das outras cores, quando as mesmas reunirem os pressupostos que justificaram a edição deste post, se ainda aqui estivermos...


3 comentários:

CLUBE DAS LÍNGUAS VIVAS disse...

Bem... Adoramos a nota final da Administrador :-)

Que subtileza... :-)

Anónimo disse...

A palavra Maio acende uma luz de esperança...

BRISADAREOSA disse...

"Subtileza" de quem escreve ... e "esperteza" de quem lê ! :)